Estudo brasileiro revela que o discurso da resiliência a desastres passou a ser mobilizado como um signo de greenwashing e de gentrificação. Para pesquisadora, é possível resgatar o significado socioecológico da resiliência para que ela seja entendida não como uma moeda de troca, mas como uma prática social, política e coletiva de adaptação e mitigação às mudanças climáticas globais. às mudanças climáticas globais.
Por Redação ABMGeo
Ao longo das últimas décadas, o conceito de resiliência emergiu nos estudos da gestão de riscos e desastres (GRD) e nas agendas de políticas públicas com o intuito de refletir sobre como lidar com as dinâmicas que surgem após um desastre socionatural – como deslizamentos, inundações, enxurradas, entre outros. No Brasil, país historicamente afetado pelos impactos sociais e ambientais deflagrados pelos fenômenos hidrogeológicos, foi realizado um estudo que busca expor como o discurso da resiliência passou a ser mobilizado como um signo global de greenwashing, cujos efeitos negativos são amortecidos pelos países em desenvolvimento. A conclusão da pesquisa é de que, a partir da agenda internacional de resiliência climática, os desastres e a crise ecológica são transformados em mais um modelo de negócios, lucrativo para determinados grupos financeiros e promotor de segregação socioespacial nas cidades.
Publicado na Revista GeoUSP, o trabalho foi realizado pela geóloga e pesquisadora Dra. Talita Gantus de Oliveira, durante seu doutorado no Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Talita se baseou no método de análise de discurso, analisando os seguintes documentos: Guia Como construir cidades mais resilientes – Um guia para líderes do governo local, elaborado pelo Escritório Internacional das Nações Unidas para a Redução do Risco de Desastres (UNISDR), e o Relatório Lidando com perdas: opções de proteção financeira contra desastres no Brasil, desenvolvido pelo Banco Mundial.
De acordo com o artigo, o método de análise de discurso possibilitou compreender o sentido que vem sendo empregado à resiliência – categoria-chave na agenda de gestão de riscos e desastres causados por fenômenos geológicos e hidrológicos atualmente. Ao mesmo tempo, foram levantados outros significantes (outras palavras) que aparecem encadeados à resiliência nesses documentos e diretrizes – os quais orientam políticas públicas também em escala nacional.
O artigo traz como exemplo do guia para cidades resilientes da UNISDR o trecho do documento que diz: “como as mudanças climáticas e os eventos climáticos extremos tendem a aumentar a exposição das cidades às ameaças e aos riscos, a Redução de Riscos e Desastres torna-se um investimento, aumentando o retorno dos negócios”.
Segundo o artigo, o documento elaborado pela UNISDR também afirma que “negócios e investidores privados podem afastar-se de cidades nitidamente indiferentes às ações de redução de riscos de desastres. Uma gestão integrada de riscos de desastres é mais atraente quando é simultaneamente dirigida às necessidades de diversos públicos e às prioridades que com ela competem” – aponta o documento.
Essas colocações, entre outras analisadas no artigo de Gantus-Oliveira, permitiram à pesquisadora demonstrar a hipótese de que a agenda de desastres vem sendo mobilizada como uma oportunidade atraente para novos modelos de negócios. Neles, são priorizadas medidas que objetivem um retorno financeiro dos investimentos privados nas ações para fortalecer a resiliência a desastres.
Entrevistada, Talita afirma que “quando a resiliência é entendida por esta lógica mercantil, acontece uma desresponsabilização do Estado como o principal agente promotor da segurança pública, do bem-estar social e da saúde ambiental coletiva, como prevê a Constituição Federal brasileira.”
Para Talita, “nessa perspectiva, a crise ambiental não seria entendida como uma questão política, mas uma falha de mercado que deve ser corrigida por uma solução de mercado.” Por outro lado, como coloca a pesquisadora, “a resiliência é, ao mesmo tempo, um conceito e uma prática que permite pensar em formas de recuperação e reconstrução que buscam não somente retornar à normalidade pré-desastre, mas questionar e superar a vulnerabilidade das populações expostas ao risco.”
Em um cenário de deslizamento abrupto, idosos que moram sozinhos, pessoas com deficiência que necessitam de ajuda para mobilidade e famílias monoparentais chefiadas por mulheres com filhos pequenos são exemplos de condições que aumentam a vulnerabilidade frente ao desastre. “Quando não há uma consciência individual e coletiva das condições nas quais a comunidade ao redor está inserida, a capacidade de resposta na tentativa de evitar perdas de vidas humanas nesses eventos, e a capacidade de recuperação e resiliência daquele território é reduzida” – aponta a autora.
“Assim, as práticas socioespaciais da resistência surgem como uma maneira de se repensar a resiliência, de dar um novo sentido a este conceito, transformado hoje em moeda de troca”, ressalta Talita em entrevista.
Perguntada de que maneira a resiliência, a partir das práticas da resistência, emerge no momento da catástrofe, a pesquisadora cita como exemplo o desastre em São Luiz do Paraitinga, no estado de São Paulo, em 2010, “em que a própria comunidade se mobilizou para resgatar as imagens sacras que estavam na Igreja Católica Matriz destruída pelo evento, pois tinham esses bens simbólicos como preciosos em termos identitários”. Para ela, “a potência dos vínculos afetivos com o território e com a comunidade a que se pertence, isto não pode ser mercantilizado. E esta é a resiliência que sinaliza para a saída da crise social e ecológica que vivemos hoje com os desastres e as mudanças climáticas” – conclui a pesquisadora.
Excelente matéria, fiquei interessada em ler o artigo na íntegra mas o link não funciona. Teria como fazer um update nesse link? Parabéns ABMGEO!
Excelente texto e abordagem! Parabéns
Seria muito interessante se houve a promoção de um minicurso abordando essa questão com maior profundidade