Estudo brasileiro analisa as condições de vulnerabilidade de mulheres residentes nas áreas urbanas com risco de escorregamentos em Santos, no litoral de São Paulo. Por meio de uma pesquisa quali-quantitativa, as conclusões revelam como a desigualdade de gênero intensifica os impactos dos desastres socionaturais.
Por Redação ABMGeo
Publicado em fevereiro na plataforma Scielo pela Revista de Estudos Feministas, a pesquisa, de autoria da geóloga Dra. Talita Gantus de Oliveira, analisou as condições sociais e materiais de vulnerabilidade de mulheres residentes nas áreas urbanas com risco de escorregamentos em Santos, no litoral de São Paulo. O estudo tornou evidente a feminização da pobreza e uma agravada situação de vulnerabilidade social que reflete na vulnerabilidade a desastres.
Com o título Vulnerabilidade de gênero e raça e os desastres socionaturais, o artigo é fruto da tese de doutorado de Talita, desenvolvida no Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas e financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Foram utilizados métodos estatísticos e de cartografia e geoprocessamento – uma técnica que permite a representação do espaço geográfico em ambiente digital. Os métodos foram aplicados nos dados populacionais de setores mapeados como de risco a escorregamentos.
Os dados censitários, provenientes da Base Territorial Estatística de Risco (BATER), são viabilizados publicamente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (CEMADEN).
O estudo da geóloga analisou 11 áreas de risco nos morros de Santos. Segundo o artigo, a maior parte dos domicílios analisados cujo responsável não é alfabetizado é composto por mulheres, atingindo 80% no Morro do José Menino, região santista, seguido de 68,4% no Morro da Penha. A feminização e a racialização da pobreza são parâmetros que se associam ao acesso à educação. Segundo dados do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), a diferença de acesso à educação entre mulheres brancas e negras é consideravelmente maior que entre mulheres brancas e homens brancos. “A baixa escolaridade contribui para a vulnerabilidade econômica, gerando dificuldades que se retroalimentam no enfrentamento ao desastre e na gestão do risco”, destaca a autora.
Ao relacionar os dados de acesso ao esgotamento sanitário com a desigualdade entre homens e mulheres em que o responsável pelo domicílio não possui rendimentos, Talita demonstrou que as áreas de risco que apresentam os menores índices de esgotamento sanitário – 52,5% na região de Santos conhecida como Torquato Dias, e 67,2% no Morro da Penha – apresentam alta proporção de domicílios sem rendimentos cujos responsáveis são mulheres, 100% e 69%, respectivamente.
Em entrevista, Talita afirma que “a falta de urbanização adequada e de serviços básicos de saneamento (como esgotamento sanitário, distribuição e despejo de água servida e sistema de drenagem de águas pluviais) está entre os principais condicionantes deflagradores de deslizamentos.” Segundo a pesquisadora, o manejo inadequado da água e dos resíduos pode intensificar processos erosivos no solo, facilitando sua movimentação e o desencadeamento de um desastre.
“Além de acelerar o fenômeno de movimento de massa, a falta de saneamento aumenta a vulnerabilidade da população, pois pode causar impactos na saúde humana. Seja diretamente, por meio de vetores epidemiológicos, como nos casos de leptospirose, que são muito comuns em eventos de deslizamentos e inundações; seja indiretamente, pela via da contaminação hídrica” – salienta a pesquisadora.
Como aponta o artigo, a contaminação ambiental afeta as mulheres mesmo que elas não sejam as atingidas diretas. Responsabilizadas pelos trabalhos domésticos e de cuidados, o adoecimento de membros da família acaba por sobrecarregá-las física e psiquicamente.
Além disso, a interrupção dos serviços de fornecimento de água, que pode ser ocasionada pela danificação de infraestruturas de saneamento em tempestades e escorregamentos, também afeta principalmente as mulheres. Isto porque a água é um elemento essencial para a realização de tarefas domésticas, como o preparo de refeições, a higiene das crianças e a limpeza da habitação atingida, que, geralmente, ficam sob responsabilidade delas.
Torquato Dias, área de risco que apresenta o menor índice de esgotamento sanitário, também apresenta a maior concentração de crianças menores de 14 anos, 32,8% – a título de comparação, em Santos, a proporção de crianças menores de 14 anos é de 16,7%.
Com mais crianças expostas a doenças em consequência da carência de saúde ambiental nas áreas de risco, a vulnerabilidade das mulheres cuidadoras se torna ainda maior.
Torquato Dias, que apresenta a maior proporção de crianças, é também a área em que 100% dos domicílios cujo responsável não possui rendimentos é chefiado por mulheres. Dentre os domicílios analisados cujo responsável não possui rendimentos, a maioria deles é chefiado por mulheres, 8 das 11 áreas, o que expressa o caráter da feminização da pobreza e do risco – afirma Talita no artigo.
Apesar de trazer no título a referência à vulnerabilidade de gênero e raça, o estudo não empreende uma análise racial das áreas de risco. Esta limitação é apontada pela própria autora, ao afirmar a impossibilidade de levantar os dados da população negra residente em áreas de risco devido à ausência dessa variável na base de dados desenvolvida pelo IBGE e CEMADEN, a BATER.
Partindo do conceito de pacto narcísico da branquitude, proposto pela pesquisadora Cida Bento, Talita nomeia de “desracialização institucional do gênero” a ausência de parâmetros raciais na BATER – a base de dados pública da população em áreas de risco no Brasil. Para a pesquisadora, isto reflete o racismo institucional presente na estrutura de poder que orienta as políticas públicas e tomadas de decisão para gestão de riscos.
“Eu entendo como uma prática de racismo institucional essa ausência de dados raciais na BATER porque ela foi desenvolvida por instituições do Estado. Além disso, essa prática reflete o racismo estrutural porque, quando analisamos racialmente as áreas de risco no Brasil, duas coisas ficam claras: o problema do risco é habitacional, e, portanto, econômico; e é racial, pois a maior parte dos moradores de favelas, periferias e comunidades em áreas de risco são pessoas negras. A outra faceta daquilo que é estrutural – como o racismo, o patriarcado e o capitalismo –, é que é inconsciente. Ou seja, além de organizar a sociedade, nem sempre se percebe que está reproduzindo a discriminação. Aí, quando você vê que a própria instituição Estado oculta o dado racial, omite o racismo ambiental, e ignora o problema da feminização racializada da pobreza e do risco, você começa a entender o porquê de ser tão difícil derrubar essa estrutura de poder da branquitude patriarcal.”
Apesar das limitações e lacunas apontadas, Talita considera que a BATER representa um avanço para a ciência dos desastres e o planejamento de políticas públicas para a redução de riscos no Brasil.
Segundo a pesquisadora, “em geral, o levantamento de riscos é traduzido em termos de quantificação e avaliação da ameaça natural – que muitos cientistas entendem como vulnerabilidade física ou ambiental –, e não da relação entre ameaça e vulnerabilidade da população exposta.”
Para Gantus-Oliveira, a compreensão dos cenários de risco e vulnerabilidade fornece elementos que podem orientar mudanças nas práticas políticas e no planejamento urbano, tornando os territórios de fato preventivos e resilientes aos desastres. “Compreender como e por que mulheres negras são mais impactadas e têm maior dificuldade em se recuperar materialmente e psiquicamente dos desastres é de suma importância para que as políticas públicas de redução de riscos contribuam, também, para mitigar e combater as desigualdades de gênero, raça e classe inscritas nas cidades brasileiras”, finaliza.
Comments