Mês passado, em 20 de novembro, celebramos o Dia da Consciência Negra. É um dia de rememorar as lutas antirracistas travadas e lideradas pelo povo negro ao longo dos últimos séculos como forma de resistência e de possibilidade da manutenção de sua ancestralidade.
O projeto colonial-capitalista ergueu suas estruturas com base na escravidão de corpos negros (e do genocídio indígena – vale lembrar). Mas esse projeto se estende até os dias de hoje, assumindo outras características que tornam a violência ainda mais intrincada. Quando pensamos em nosso lócus de mulheres das geociências, predominantemente branco e de classe média, muitas vezes ignoramos que, para estarmos nesse lugar, muitas mulheres e homens negros são oprimidas em cargos subalternizados, dentro da empresa onde trabalhamos, ou da universidade em que estudamos.
O déficit habitacional é feminino e negro, a população carcerária é majoritariamente negra, corpos negros foram as maiores vítimas da Covid-19, cerca de 80% da população atingida pelo desastre-crime da Samarco/Vale/BHP é negra, os bairros que sofrem com a carência de serviços públicos são majoritariamente negros. Em contrapartida, nesses mesmos locais o poder público se faz presente para ratificar o papel para o qual esse modelo de Estado-nação, capitalista, sustentáculo da colonialidade, surgiu: gerir a desordem pelo medo. A população que morre nas mãos da polícia no Brasil é negra.
Nesse sentido, pensamos ser de suma importância debatermos o papel da branquitude na construção e perpetuação desse projeto civilizacional racista. Brancos criaram o racismo, brancos criaram a colonialidade, brancos se privilegiam com isso.
Um ponto importante também a se considerar é o de que quando pessoas negras e não-brancas ascendem socialmente, em profissões mais valorizadas, elas, muitas vezes, não são reconhecidas naquele lugar. Exemplos disso encontramos quando pessoas brancas se recusam a serem atendidas por profissionais negros. Ou quando esses profissionais não são reconhecidos como tais, mesmo portando identificação, em alguns casos, sendo confundidos com trabalhadores menos valorizados como aqueles da limpeza ou da manutenção do local. A branquitude não espera que pessoas negras estejam ali, em lugares diferentes da norma colonial, que os coloca somente em cargos subalternizados e não valorizados.
Todavia, existe uma dificuldade para pessoas brancas reconhecerem sua branquitude, reconhecerem que a categorização étnico-racial também as coloca dentro de uma compartimentação. Mas, importante aqui destacar que a divisão racial, criada pela branquitude europeia durante o empreendimento colonial, universaliza pessoas brancas como se elas não tivessem raça.
O fazer-se do branco e a superioridade criada pelos brancos para si mesmos não podem ser separados dos processos de criação do outro, ou seja, dos não-brancos. Não se trata de um processo de trocas entre brancos e não-brancos, mas de imposição de formas de classificação criadas por brancos sobre os não-brancos. Essas formas de classificação não são neutras, elas são acompanhadas de práticas violentas nesses relacionamentos geridos por uma práxis racista. Ao criar a inferioridade do outro, a branquitude criou sua superioridade.
É urgente repensarmos o tipo de sociedade onde queremos viver e rompermos o pacto narcísico da branquitude - termo cunhado por Cida Bento a partir da figura mítica de Narciso, para desvelar o compromisso da branquitude em manter a estrutura racial injusta que os privilegia: um pacto de proteção e premiação.
Quando mulheres brancas das geociências lutam por equidade de gênero, seja em cargos de coordenação e docência nas universidades, seja em cargos de empresas corporativas, lutam, também, por suas irmãs negras que limpam seus locais de trabalho e, muitas vezes, suas casas?
Sobre esse tema, Françoise Vergès, em seu livro “Por um feminismo decolonial”, coloca em debate, no âmbito do feminismo decolonial, a seguinte pergunta: “Quem limpa o mundo?”. A autora se vale epistemicamente da decolonialidade para invocar um feminismo da totalidade. Desestabiliza o feminismo branco burguês, enraizado no movimento sufragista da França (semelhantes no Brasil e EUA), que a autora chama de feminismo civilizatório. Segundo ela, “[o feminismo civilizatório] transforma os direitos das mulheres em uma ideologia de assimilação e de integração à ordem neoliberal e reduz as aspirações revolucionárias das mulheres à demanda por divisão igualitária dos privilégios concedidos aos homens brancos”. Que, não por coincidência, se baseia na supremacia racial branca.
“O capitalismo não hesita em adotar o feminismo corporativo, o discurso dos direitos das mulheres segundo o qual as desigualdades em relação aos homens são uma questão de mentalidade, de falta de educação. Devemos chamar a atenção para a insistência em não admitir que estamos falando de estruturas”, afirma Vergès. Ainda, "a vida confortável das mulheres da burguesia só é possível em um mundo onde milhões de mulheres racializadas e exploradas proporcionam esse conforto, fabricando suas roupas, limpando suas casas e os escritórios onde trabalham, tomando conta de seus filhos, cuidando das necessidades sexuais de seus maridos, irmãos e companheiros. Consequentemente, elas têm como passatempo discutir a legitimidade das coisas, reclamar que não querem ser “incomodadas” no metrô ou aspirar a postos de liderança de grandes empresas." Para a autora, o que está em questão é a forma como a divisão do mundo, na qual a escravidão e o colonialismo operam, atravessa os feminismos ocidentais.
Não será possível enfrentarmos o racismo apenas deixando-o ser discutido por pessoas que são por ele oprimidas, e que já dedicam muito tempo de sua vida a enfrentar e sobreviver ao racismo cotidiano e às estruturas que o sustentam. É preciso que a branquitude seja discutida também por pessoas brancas, porque ela é parte constituinte das relações raciais e responsável pela perpetuação da opressão.
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