Por Talita Gantus
A socialização é um processo que começa desde que nascemos até o fim da vida. É como a gente absorve, interioriza a realidade ao nosso redor. Ela gera comportamentos e entendimentos de mundo. Essa socialização ensina padrões e representações de ordem coletiva e individual. Logo, se somos socializados em uma cultura machista e racista, reproduzimos isso mesmo que de modo inconsciente.
Vivemos hoje em uma sociedade patriarcal e racial, na qual o gênero e a raça constituem uma estrutura de poder. Os homens e a branquitude se beneficiam dessa estrutura que oprime mulheres, principalmente negras e indígenas. Isso reflete em nossos comportamentos e, de modo mais amplo, em nossas autonomias, permissões, na divisão sexual e racial do trabalho, nos papéis desempenhados na sociedade e na ocupação dos espaços, sejam eles públicos ou privados.
A geógrafa Doreen Massey, em seu livro Espaço, lugar e gênero, traz o debate de que espaços e lugares, não têm, por eles mesmos, uma relação de gênero, mas eles refletem e afetam o modo pelo qual o gênero é construído e entendido na sociedade. É possível afirmar, portanto, que existe uma divisão sexual e racial do espaço. Às mulheres é reservado o espaço da casa, onde se dão os trabalhos reprodutivos, de limpeza, alimentação, cuidados domésticos em geral e o cuidado com crianças e idosos. Françoise Vergès, em seu livro Por um feminismo decolonial, coloca em evidência, a partir de uma epistemologia decolonial, a seguinte pergunta: “Quem limpa o mundo?”. Se há uma mulher negra para desempenhar esse papel para a mulher branca, o trabalho reprodutivo necessário para a reprodução do capitalismo adquire um outro contorno (também atravessado pela classe; afinal, ainda que mal, paga-se por esse trabalho de limpeza desempenhado, em maioria, pelas mulheres negras), tornando-se quase invisibilizado.
Como nos ensina bell hooks, em Erguer a voz, “a educação [e a ciência] não é um processo neutro. O conhecimento vem sendo usado a serviço da manutenção da supremacia branca e de outras formas de dominação”. Por isso, afirma-se que produzir uma ciência que desafia o status quo não é politicamente neutro. A ciência não é politicamente neutra, porque é socialmente construída a partir de subjetividades. Para tanto, só há uma saída possível: aprender sobre as estruturas de dominação e como elas funcionam é o que nos permite imaginar novas epistemologias e novas estratégias para a mudança e a transformação - que não sejam as “ferramentas do opressor”, como bem lembra Audre Lorde. Nesse sentido, as geociências assumem um papel importante no fortalecimento das lutas contra as opressões de gênero, raça e classe, tendo em vista que é no espaço, em relação com a Terra, que a sociedade se organiza. Os reflexos do modo de produção e de ordenamento territorial produzem espacialidades que são atravessadas pela interseccionalidade.
No caso de regiões onde a mineração se impõe sob o discurso de desenvolvimento e progresso, nota-se o aumento da precarização da vida, da vulnerabilidade das pessoas de classes sociais desfavorecidas economicamente e da violência. A Plataforma Brasileira DHESCA (Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais) apresentou o relatório Mineração e violações de direitos relativos a tal operação, pontuando como efeito: migração desordenada, agravamento nas condições de vida e nas desigualdades de gênero, precarização dos serviços públicos e vulnerabilidade à exploração sexual e outras formas de violência.
Segundo a Sempreviva Organização Feminista (SOF), nas áreas de exploração mineral é recorrente a violência doméstica contra as mulheres, a violência sexual e a prostituição. Pelos dados do Mapa da Violência, o norte do Brasil apareceu com 182 homicídios de mulheres em 2013, dado mais recente disponível. Eles apontam que a população negra é vítima prioritária, e que, enquanto as taxas de homicídio da população branca tendem a cair, as taxas de mortalidade da população negra aumentam. Nessa região, o comportamento na relação étnica foi de 76 mulheres brancas para 376 mulheres negras vitimadas em 2013. Esse artigo traz análises sobre o aumento da violência de gênero no sudeste do Pará, onde está situada a maior província mineral do mundo: Província de Carajás, explorada pela empresa Vale desde os anos 1980.
Em relação à questão agrária, vários fatores contribuem para o aumento da violência de gênero nas áreas rurais - além do isolamento político-geográfico que as nega acesso a políticas públicas. A consciência ecológica “feminina” nasce das divisões de trabalho e papéis sociais estabelecidos historicamente. Por exemplo, quando as mulheres assumem as tarefas de busca de lenha e água, o cuidado da horta e da lavoura. Além disso, são elas as responsáveis pelo trabalho doméstico de limpeza e cuidados pessoais que fazem uso da água, os quais se estendem para além do contexto rural.
Temos, hoje, uma combinação totalitária entre o agronegócio e o hidronegócio (este último envolve temas como hidrelétricas, abastecimento, saneamento e apropriação de fontes de água). O resultado são conflitos relacionados à deficiência no balanço hídrico em áreas rurais, contaminação e insegurança hídrica, o que coloca as mulheres, responsáveis pela gestão da água, como as mais impactadas. Nesse sentido, as mulheres camponesas, indígenas, quilombolas e ribeirinhas são as mais atingidas pelo agronegócio.
Sobre a questão urbana e a produção antrópica dos desastres ambientais, é possível afirmar que o processo de segregação socioespacial capitalista tem cor. A urbanização preconizada pelo capitalismo leva as populações negras à periferização e à favelização nas cidades, em áreas de risco geotecnicamente instáveis e ambientalmente inseguras. Dados de 2014 do IBGE apontam que 76% dos mais pobres no Brasil são negros. Segundo o IPEA, 43% das famílias em áreas urbanas são chefiadas por mulheres. E 63% das casas comandadas por mulheres negras estão abaixo da linha da pobreza. Portanto, é impossível falar sobre direito à cidade, urbanismo, planejamento urbano e “cidades inteligentes” sem levar em consideração esses recortes. O projeto Cidade Utopia: aliada na vida das mulheres aponta a transformação das cidades a partir de uma perspectiva feminista libertadora. Uma responsabilidade coletiva que precisa ser compartilhada entre todas camadas da sociedade.
Em relação aos desastres, causados por fenômenos naturais (como inundações, movimentos de massa e secas) e pela ação antrópica (como rompimentos de barragens de rejeito e de captação de água), eles respondem a 73% das migrações forçadas no Brasil. Segundo o Observatório de Migrações Forçadas, desde 2000, esses desastres provocaram o deslocamento de 6.425.182 pessoas (número equivalente à população do Rio de Janeiro, a segunda cidade mais populosa do país).
Um estudo desenvolvido numa parceria entre IBGE e Cemaden apontou que cerca de 51% dos indivíduos expostos ao risco [de inundações e deslizamentos], nos 825 municípios analisados, eram mulheres. Entre os chefes de família analfabetos nessas áreas, 52% eram mulheres. Segundo a ONU, mulheres e meninas têm mais probabilidade de morrer em tragédias causadas por fenômenos naturais; elas representaram 77% dos mortos no tsunami no Oceano Índico, em 2004. Em relação aos desastres-crime de Mariana e Brumadinho, ocasionados pelo rompimento de barragens de rejeito sob responsabilidade da Vale, observa-se uma distribuição desigual dos impactos prejudiciais, que recaem, de maneira mais ostensiva, sobre grupos historicamente vulneráveis, como as populações indígenas, negras e as mulheres.
Todavia, esse artigo aponta que a vulnerabilidade aos desastres é socialmente construída. Atrela-se, portanto, a padrões socioeconômicos, culturais, de acesso à informação, de segurança e pela forma de discriminação de gênero que é vivida em cada sociedade. Partindo da construção social por trás do papel de gênero - desmistificado por Simone de Beauvoir em O Segundo sexo -, e da construção social da raça no que diz respeito às mulheres negras e indígenas - como desenvolve Lélia González ao longo de sua extensa obra -, exclui-se a relação entre vulnerabilidade e condicionantes biológicos.
É preciso divulgar e construir, nas geociências, epistemologias e metodologias que nos ajudem a pensar como gênero e raça atravessam a relação entre capital e trabalho (re)produtivo, e como esses dispositivos de opressão são indissociáveis ao modo de produção capitalista. Ainda, como o controle que a classe rentista exerce sobre os recursos naturais permite que seja criada e manipulada a escassez, produzindo impactos ambientais que afetam, principalmente, mulheres, pessoas negras, indígenas e trans. A pergunta que precisa ser feita é: quais são os processos históricos e sociais por trás das condições materiais que levam as mulheres (principalmente negras, indígenas e trans) a ocuparem posições de maior vulnerabilidade no que tange os desastres e impactos ambientais?
Por fim, gostaria de deixar aqui um convite às pessoas interessadas na busca por reflexões teóricas e instrumentos metodológicos para o desenvolvimento de pesquisas transdisciplinares quali-quantitativas que atuem na interface entre estudos de gênero, em suas interseccionalidades, e as questões socioecológicas e ambientais: ministrarei o Curso Gênero e Geociências, em parceria com a ABMGeo, onde discorreremos em mais detalhes teórico-metodológicos sobre esse assunto. Mais informações sobre o curso, bem como a ementa, podem ser acessadas clicando aqui.
Este texto é de autoria de:
Talita Gantus de Oliveira
Geóloga, mestra em Geologia Ambiental e doutoranda em Geociências pela Unicamp, onde pesquisa sobre desastres ambientais e gestão de riscos. Integra o grupo de Pesquisa e Ação em Conflitos Riscos e Impactos Associados a Barragens (CRIAB/Unicamp). Divulgadora científica em a_Ponte. Compõe, atualmente, a diretoria nacional da ABMGeo.
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